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Reflexo no espelho: Entre Perseu e Narciso

A imagem refletida

No Metamorfoses de Ovídio, Perseu empreende uma saga para que consiga obter a cabeça da Medusa. Sabe que ela possui poderes mortíferos, precisa se guiar de modo a alcançá-la mas ao mesmo tempo não pode mirar os olhos da górgona. É necessário observá-la tomando cuidado para não ter o mesmo fim daqueles que tentaram em vão alcançá-la. Para obter sucesso, o filho de Zeus busca ajuda dos deuses, nessa trajetória, entre outros objetos, recebe um escudo para proteger-se. De forma astuta, consegue saber os passos da Medusa guiando-se pela imagem refletida no objeto, o escudo permite que Perseu golpeie a cabeça de forma certeira, os outros objetos mágicos permitem que ele fuja das outras duas górgonas e retorne para a sua jornada.

A ideia de narcisismo já estava presente na psiquiatria com a descrição dos comportamentos perversos feita por P. Näcke (1899) que designou o termo para classificar a conduta em que o indivíduo trata o próprio corpo como se este fosse o o objeto sexual (FREUD, 1914). O narcisismo chamou a atenção de Freud, pois algumas características do termo se apresentavam nos sintomas de sua clínica. O narcisismo, retoma o mito de Eco e Narciso, a história de um jovem que caiu de amores pela própria imagem.


Eco e Narciso

Nos poemas de Ovídio, conta-se que Narciso nasceu da união entre o deus do rio Céfiso e da ninfa Liríope. Desde muito jovem, todos o achavam encantador, seu corpo tinha belezas nunca vistas antes. Muitos se apaixonaram perdidamente pelo rapaz. Eco foi uma das ninfas que caiu de amores por Narciso, amaldiçoada por Hera, só repetia as últimas palavras de quem lhe dirigia, o que a impedia de falar livremente. Durante certo tempo seguiu Narciso, também encantada por tamanha beleza, mas um dia, o jovem percebeu que alguém o seguia e quando Eco se revelou, a recusou grosseiramente:


Desprezada, oculta-se nas florestas e, envergonhada, cobre a face com folhagens e, desde então, vive em solitários antros. Mas seu amor mantém-se, e cresce até com a dor da recusa. E as preocupações que lhe tiram o sono, mirram-lhe o infeliz corpo, a magreza enruga-lhe a pele, e todo o humor do corpo se evola no ar. Apenas lhe resta a voz e os ossos. (OVÍDIO, versos 393-398)


Os tantos apaixonados desprezados logo se viraram aos céus e clamaram suas angústias à deusa Nêmesis, que compadecida com as orações, lançou uma maldição a Narciso condenando-o a se apaixonar pelo próprio reflexo tal como outros se apaixonaram por ele. O jovem, cansado pelo entusiasmo da caça e pelo calor, atraído pela beleza do lugar e pela fonte, descansou aí. Ao procurar saciar uma sede, brota nele uma outra sede. Enquanto bebe, arrebatado pela imagem da beleza que avista, ama uma ilusão sem corpo. Crê ser corpo o que apenas é água. Extasia-se ante si mesmo e fica imóvel, de rosto imóvel também, fica hirto como uma estátua de mármore de Paros. ( OVÍDIO, versos 413-419)

A maldição se concretiza quando Narciso, ao descansar de um dia de caçadas, encosta-se próximo a uma fonte, ao se debruçar para beber a água, vê o próprio reflexo e logo fica apaixonado pela imagem refletida no lago:


Sem o saber, a si se deseja; é aquele que ama, e é ele o amado. Ao cortejar, a si se corteja. Arde no fogo que acende. Quantos beijos inúteis deu na fonte que lhe mentia! Quantas vezes, para abraçar seu pescoço, que via no meio das águas, mergulhou os braços sem nele se encontrar. Não sabe o que vê, mas o que vê consome-o (425-430)


Sua paixão lhe é insuportável, não consegue alcançar aquela imagem, embora lhe pareça que o amor é recíproco, algo o separa de seu amado. Consumido por esse sentimento, decide pela morte:


E, entre lágrimas, rasga sua veste de cima a baixo e fere o peito desnudado com cor de mármore. Ferido, o peito adquire um rubor rosado, como acontece às maçãs que, estando claras de um lado, adquirem do outro uma rubra cor (480-483)


Eco se depara com Narciso em seu momento derradeiro, não pode lhe dizer nada, apenas repetir suas palavras:


Mas esta (Eco), ao vê-lo, irada e ressentida embora, compadeceu-se dele e sempre que o jovem infeliz gritava “ai!”, com a voz em eco, ela respondia “ai!”. E quando, com as mãos, ele feria seus braços, ela devolvia o mesmo som dos golpes (494-499)


As últimas palavras que ecoam, ressoam de forma horrenda, acompanham o despedaçamento de si próprio, Narciso teve uma paixão tão intensa por si mesmo que não viu outra saída que não a de se destruir em seu amor.

A ideia de narcisismo para a psicanálise, aponta um amor por si que é necessário para a constituição de si, no entanto, o ensimesmamento deprime e o completo fechamento para o mundo exterior impede o vínculo com os outros.


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